RESENHAS
OS INTELECTUAIS NA HISTÓRIA DA INFÂNCIA
Marcos Cezar
de Freitas, Moysés Kuhlmann Jr. (orgs.) São Paulo: Cortez, 2002, 503 p. Os Intelectuais na história da infância,
obra organizada por Marcos Cezar de Freitas e Moysés Kuhlmann Jr., traz
contribuições relevantes e muito significativas para o campo da história da
educação e para a história da infância brasileira. O projeto desse grande
dossiê já havia sido anunciado quando foi publicado, em 1997, um outro livro de
igual importância, sob o título de História
social da infância no Brasil. Essa publicação abriu caminhos para uma
reflexão articulada, no país e fora dele, a respeito do entretecer de ideias,
concepções e representações que, nos últimos séculos, têm acompanhado
interpretações socialmente produzidas e divulgadas sobre a criança em suas
singularidades, influindo nas políticas relacionadas ao atendimento de suas
necessidades. No livro, Os Intelectuais
na história da infância, autores brasileiros e estrangeiros foram
convidados a continuar a construção dessa trama de ideias, com o objetivo de
trazer ao leitor momentos particulares, nos quais o trabalho intelectual
transformou os temas criança e infância em objetos de ciência, produzindo
inúmeras obras de referência sobre esse tema. Trata-se de uma coletânea
produzida por autores convidados do Brasil, Argentina, Portugal e Estados
Unidos.
Para que o
leitor possa ter maior visibilidade desse importante dossiê sobre a história da
infância, apresento a seguir as principais questões abordadas nos diferentes
textos. O Desencantamento da criança:
entre a Renascença e o Século das Luzes, de Carlota Boto, dialoga com
partes do repertório da história das ideias pedagógicas, tendo como referência
a reflexão bibliográfica corrente no campo da história da Filosofia da
Educação. O ponto de partida desse estudo é o pensamento renascentista sobre a
criança, abordando, em seguida, aspectos da pedagogia jesuítica e também da
contribuição de dois teóricos clássicos do pensamento pedagógico dos séculos
XVII e XVIII: Comenius e Rousseau. É
nesta demarcação que a autora busca compreender a apropriação que a modernidade
produziu sobre a categoria infância, em
que crianças foram transformadas em alunos, o que, conseqüentemente, gerou
diferentes maneiras de se compreender o campo de estudo da educação.
Educando príncipes no espelho, de João
Adolfo Hansen, traz contribuições significativas para compreender como os
filhos da nobreza foram educados na Idade Média. O autor trata do a priori, doutrinário de algumas categorias
institucionais que ordenam o modelo ético-político do príncipe prudente em um
gênero didático muito ativo nessa educação, o
espelho de príncipe, conhecido na Idade Média como speculum, ou specula
Principum. Analisa também seu objetivo de apresentar um conjunto de
virtudes cristãs que deve servir de orientação para a educação de um bom
governante.
Ana Luiza
Bustamante Smolka, em Estatuto de
sujeito, desenvolvimento humano e teorização sobre a criança, discute as
condições de produção sobre o desenvolvimento infantil. Muito mais do que
historiar ideias, a autora propõe-se a fazer uma análise dos modos pelos quais
determinadas questões e saberes foram formulados sobre a educação infantil. São
destacados três autores do século XX, cujas ideias causaram grande impacto, a
saber: Henry Wallon, Jean Piaget e Lev Vygotsky. Smolka situa os autores
analisando as condições históricas e sociais que conformaram a produção de seus
pressupostos teóricos. Nesse sentido, procura entretecer aquilo que se pode
chamar de herança cultural e de ambiência cultural dos autores, discutindo suas
posições, perspectivas e opções.
A Linha vermelha do planeta infância: o
socialismo e a educação da criança, de Paolo Nosella, faz um panorama
histórico das principais contribuições teórico-práticas da tradição socialista
para a educação da criança. O texto foi construído em três partes: o socialismo
utópico; o socialismo científico; o socialismo investigativo. A primeira parte
abrange o período que vai da Revolução Industrial até a publicação do Manifesto
comunista. A segunda abrange o período que vai da publicação do Manifesto
comunista à ascensão de Stálin, caracterizado pelo socialismo científico. A
terceira e última parte compreende o período que vai da divulgação dos textos
de Gramsci aos dias de hoje, denominado socialismo investigativo.
A Infância no discurso dos intelectuais
portugueses do Antigo Regime, por Antônio Gomes Ferreira, apresenta
inicialmente uma crítica às pesquisas que interrogaram e analisaram as
sociedades tradicionais, algumas vezes de forma precipitada, a partir de informações
de materiais disponíveis e com um certo olhar contemporâneo. Apesar dessa
crítica, o autor não nega a contribuição de alguns pesquisadores que
interpretaram a indiferença dos adultos diante da infância até o século XVIII.
O enfoque principal desse texto situa-se no século XVIII, no Antigo Regime, em
Portugal, num tempo de mudanças, marcado por dualismos tanto na produção de
conhecimentos na esfera cultural e socioeconômica quanto nas esferas científico,
médico, sanitárias e pedagógica. A educação das crianças passa então a ser alvo
dos intelectuais, médicos e pedagogos portugueses e também da administração
pública, que querem assegurar a eficiência do governo. O autor mostra, ainda,
como a infância deixou de ser uma etapa interpretada a partir do discurso
religioso, para passar a ser interpretada à luz do pensamento laico. Nesse
sentido, as crianças passam a ser educadas a partir dos interesses dos adultos
e em função das exigências da sociedade vigente.
Simón Rodríguez, mestre de primeiras letras
e as ideias sem fronteiras, de Maria Ligia Coelho Prado, tem por tema a
trajetória deste personagem histórico e sua contribuição inovadora para a educação
venezuelana. A autora busca responder a duas questões centrais que se articulam
à idéia do obscurantismo do mundo colonial hispano-americano. A primeira delas
consiste em como relacionar a trajetória do professor Simón Rodríguez com essas
imagens congeladas? A segunda, como foi possível a um rapaz sem recursos, que
não frequentou a universidade, que apenas estudou na escola por ele mesmo
criticada, entrar em contato com as novas ideias e transformá-las em um projeto
de intervenção social? (p.201). Maria Ligia Coelho Prado conclui que o percurso
e as ideias de Rodríguez põem em dúvida a visão de uma sociedade colonial
fechada em si mesma. Isto porque a autora observa na sua principal produção
escrita, Reflexiones, uma apropriação
de correntes filosóficas e educacionais diversas, fruto da convivência de ideias
sem fronteiras, que circulavam a despeito das dificuldades da censura religiosa
e do poder da Coroa.
Os Pedagogos lancasterianos e a infância,
de Mariano Narodwski, introduzem o método
lancasteriano e sua vulgarização de norte a sul das Américas. De maneira
específica analisa como este método chegou até Buenos Aires, nas primeiras
décadas do século XIX, a partir da incorporação de dois estrangeiros na gestão
da política educacional
Argentina: o britânico James Thomson e o espanhol Pablo Baladía. Analisa, ainda as singularidades das relações entre infância, disciplina do corpo infantil e o método mútuo (Lancaster) como elementos que influenciaram de maneira definitiva o processo de escolarização nesse país.
Argentina: o britânico James Thomson e o espanhol Pablo Baladía. Analisa, ainda as singularidades das relações entre infância, disciplina do corpo infantil e o método mútuo (Lancaster) como elementos que influenciaram de maneira definitiva o processo de escolarização nesse país.
Em, Escolarização da infância brasileira: a
contribuição do bacharel Bernardo Pereira de Vasconcelos, Luciano Mendes de
Faria Filho e Zeli Efigênia Santos de Sales, analisam o momento posterior à
proclamação da independência do Brasil, como um dos mais importantes da
história do processo de escolarização da infância. Para fundamentar esta
afirmação destacam dois motivos. O primeiro refere-se ao discurso fundador
produzido acerca da escolarização no Brasil, formalizado pela produção de leis,
atualizando no Brasil uma tradição Ibérica. O segundo motivo diz respeito à
produção desse discurso fundador por um importante sujeito da nossa história
educativo-cultural, o bacharel. A partir dos debates produzidos por esses
bacharéis, nos anos 20 e 30, do século XIX, a educação escolar da infância
passa a ser objeto de atenção da sociedade em geral, e dos legisladores em
particular, demarcando um tempo de submissão e constituição de novos sujeitos,
o aluno.
A obra de
Francisco Adolfo Coelho (1847- 1919), que tomou a criança e a educação
portuguesa como sua preocupação maior, deixou uma rica obra de ideias e
propostas pedagógicas. Esse é o tema do texto A educação infantil na obra de Francisco Adolfo Coelho, de Rogério
Fernandes, que examina a frequente presença dos intelectuais ou políticos
portugueses em algum tipo de intervenção na área da educação e na instrução
pública, no século XIX, em Portugal.
Modificar com brandura e prevenir com
cautela: racionalidade médica e higienização da infância, de José G. Gondra,
procura examinar as representações de infância produzidas e divulgadas ao longo
da formação médica no Brasil, no século XIX, e incluídas em discursos
formulados no início do século XX, especificamente nos do Dr. Moncorvo Filho. O
autor analisa o que permanece e o que desaparece da norma médica no que diz
respeito às representações sobre a infância, destaca ainda as preocupações e os
controles exercidos por esses profissionais sobre casamentos, abortos, infanticídios
e sobre a infância pobre.
A Psicanálise aplicada às crianças do
Brasil: Arthur Ramos e a criança problema, de Eliane Marta Teixeira Lopes,
analisa como esse importante intelectual da época aderiu à psicanálise
freudiana e a utilizou de maneira aplicativa na educação brasileira nos
primeiros anos do século XX. Além das ideias de Freud, a autora aponta a
efervescente circulação e debate de ideias, provenientes principalmente da
Europa, no meio intelectual brasileiro.
O artigo Da Idéia de estudar a criança no pensamento
social brasileiro: a contraface de um paradigma, de Marcos Cezar de
Freitas, apresenta o percurso de uma ideia de infância produzida pelo
intelectual sergipano Manoel Bomfim, nas primeiras décadas do século XX. A
concepção de criança de Bomfim foi atualizada no decorrer de sua trajetória
profissional, tornando-se pública por meio de seus discursos e pela edição do
livro de sua autoria, Cultura e educação do povo brasileiro, em 1932. Ao
analisar os estudos de Manoel Bomfim o autor elucida o contexto no qual suas ideias
foram produzidas e o ceticismo desse intelectual diante das possibilidades da
psicologia experimental de oferecer conhecimento científico sobre a criança e
seus processos de aprendizagem.
Pedagogia da Escola Nova, produção da
natureza infantil e controle doutrinário da escola, de Marta Maria Chagas
de Carvalho, analisa as representações sobre a criança contrapostas na polêmica
da escola ativa que lhe é contemporânea e sua refração em estratégias de
formação de professores capacitados a realizar a nova escola (p.375). A autora
destaca o fato de o movimento da Escola Nova no Brasil só ter chegado nas
primeiras décadas do século XX, diferentemente da Europa, onde surgiu como
crítica de um modelo escolar plenamente instituído. No Brasil, esse movimento,
além de tardio, chega em um contexto inversamente oposto, uma vez que o sistema
público de ensino ainda estava em processo de implantação.
Oscar Thompson na Exposição de St. Louis
(1904): a exhibit showing machinery for making machines, de Mirian Jorge Warde, focaliza a
Exposição Universal de St. Louis, realizada em 1904, nos Estados Unidos.
Para a autora, a importância desse episódio para a educação brasileira reside
no fato do então diretor da Escola Normal da Capital de São Paulo, Oscar
Thompson, ter visitado e adquirido uma série de livros que se tornaram
significativos no contexto da instrução pública paulista das primeiras décadas
republicanas. Além disso, a autora apresenta como os americanos, nessa
exposição, deram a impressão de que a nação poderia inventar e reinventar o
homem. Nesse sentido, um dos principais destaques de St. Louis foi à
classificação das matérias adotadas, na qual a educação ocupa o topo da
hierarquia.
O último texto
desta coletânea, A Circulação das ideias
sobre a educação das crianças: Brasil, início do século XX, de Moysés
Kuhlmann Jr., aborda o Congresso Brasileiro de Proteção à Infância CBPI e o 3º
Congresso Americano da Criança CAC, ambos realizados no Rio de Janeiro, em
1922, e tem por objetivo analisar como os diferentes setores sociais daquele
período apropriaram-se das ideias da educação das crianças em suas tensões e
composições.
Maurilane
de Souza Biccas
Faculdade
de Educação da USP
Publicado
- Cadernos
de Pesquisa, n. 117, novembro/ 2002, p.249-252.
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